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domingo, 3 de fevereiro de 2013

do Saramago...

"Não tenhamos pressa,  
mas não percamos tempo."
José Saramago

Apólogo da vaca lutadora

Não invento nada. Faço esta declaração imediata porque adivinho já os sorrisos solertes ou desconfiados daquela gente para quem o extraordinário é sempre sinónimo de mentira. Essas pobres pessoas não sabem que o mundo está cheio de coisas e de momentos extraordinários. Não os vêem, porque para eles o mundo aparece como coberto de cinzas, comido de verdete baço, povoado de figuras que usam roupas iguais e falam da mesma maneira, com gestos repetidos sobre gestos já feitos por outros desaparecidos seres. É gente para quem talvez não haja remédio, mas a quem devemos continuar a dizer que o mundo e o que está nele não são o tão pouco que julgam.
Isto me lembra um pequeno incidente ocorrido aqui há dias, que foi também extraordinário, pelo menos tanto, ou talvez mais, nunca se sabe. Ia eu a subir a minha rua, sossegada rua onde acontecem de vez em quando umas discussões, umas zaragatas de gente triste, e era já perto da meia-noite, quando vejo a pouca distância, especado no meio do passeio, um homem que gesticulava e falava alto. Fazia gestos largos, violentos, como se estivesse a transmitir para muito longe uma mensagem cujo sentido ninguém decifraria. Como qualquer pessoa que do álcool faça apenas consumo normal ou abaixo da média, tenho um certo receio instintivo dos bêbados. Para mim, saíram da humanidade do mundo, e criaram por lá umas leis que não conheço. A irresponsabilidade de um bêbado tolhe-me a palavra. Singularmente, é também o que me acontece com as crianças: nunca soube como havia de falar-lhes.
Volto ao assunto: Hesitei, mas obriguei-me a continuar o caminho, desse por onde desse. E fiz bem, pois ali me aconteceu a tal extraordinária coisa, que teria perdido se tivesse atravessado para o outro lado da rua, como cheguei a pensar. Ao passar ao lado do homem, que continuava a fazer gestos e a falar violentamente, vejo-o estender o braço para mim, de rompante. Não cheguei a assustar-me. Tinha na frente a mão aberta, estendida com um ar de fraternidade imperiosa a que não me era consentido fugir. Dei-lhe a minha mão e ficámos, de olhos nos olhos, em silêncio, qual o bêbado, qual o lúcido. E tenho de declarar que raras vezes na vida apertei mão tão firme e tão quente, tão densa e tão franca. A aspereza da pele vibrava na minha como uma comunicação viva. Quanto tempo durou isto? Nem um segundo, mas estas coisas não se medem pelo tempo.
A história que eu decidira contar e que o título resume, levou muito mais tempo. Foram doze dias e doze noites nuns montes na Galiza, com frio, e chuva, e gelo, e lama, e pedras como navalhas, e mato como unhas, e breves intervalos de descanso, e mais combates e investidas, e uivos, e mugidos. É a história de uma vaca rodeada de lobos durante doze dias e doze noites, e foi obrigada a defender-se e a defender o filho. Poderemos imaginar esta longuíssima batalha, esta agonia de viver no limiar da morte, de ter de lutar por si mesma e por um animalzinho débil que não sabe ainda valer-se? Um círculo de dentes, de goelas abertas, as arremetidas bruscas, as cornadas que não podem falhar. E também aqueles momentos em que o vitelo procurava as tetas da mãe, e sugava lentamente, enquanto os lobos se aproximavam, de espinhaço raso e orelhas aguçadas.
Não imaginemos mais, que não podemos. Digamos agora que ao fim dos doze dias a vaca foi encontrada e salva, mais o vitelo, e levados em glória para a aldeia, como heróis atrasados daquelas antigas histórias que se diziam às crianças para que aprendessem lições de coragem e de sacrifício. Mas este conto é de tal maneira exemplar, que não acaba aqui: vai continuar por mais dois dias, ao fim dos quais, porque se tornara brava, porque aprendera a defender-se, porque ninguém podia já dominá-la ou sequer aproximar-se dela, a vaca foi morta. Mataram-na, não os lobos que em doze dias vencera, mas os mesmos homens que a haviam salvo, talvez o próprio dono, incapaz de perceber que, tendo aprendido a lutar, aquele conformado e pacífico animal não poderia parar nunca mais.
Queria eu contar esta história, simplesmente, sem extrair dela qualquer moral, tanto mais que não estou aqui para dar lições. Mas veio meter-se de permeio a história do bêbado a quem apertei a mão, e agora não sei por que no meu espírito se aproximam as duas histórias, quando todos nós (eu e os leitores) claramente estamos a ver que nada têm uma com a outra. Decido deixar aqui estes dois casos, sem comentários. Fiquemos a pensar neles como quem, devagar, mexe em dois objetctos de uso desconhecido, à espera de uma chave que os abra ou de encontrar o lado que lhes é comum.

José Saramago, A bagagem do viajante: crônicas.